Fake Numbers – Parte 1

O viés humano da (des)informação

Em uma recente entrevista sobre educação, um dos entrevistados trouxe dados de uma pesquisa que mostrava não haver relação entre as notas dos alunos na escola e seu sucesso profissional no futuro.

Isso porque, dentre aqueles mais bem-sucedidos da amostragem, não havia uma parcela relevante de ex-alunos com bom histórico escolar.

Esse argumento me gerou um incômodo. Afinal, essa narrativa isolada, sem qualquer base de comparação, me pareceu irrelevante.

Seja por um ruído na comunicação, um erro de interpretação ou realmente um erro de metodologia, o fato é que esses dados podem ter levado muitos espectadores ao engano.

Na Era da Informação esse tipo de situação pode gerar muitos problemas e, dependendo do contexto, os estragos podem ser irreversíveis: desde um posicionamento equivocado numa conversa até o fracasso total de um negócio.

Na primeira parte desse texto, vamos entrar no tenebroso mundo das Fake News para tentar desbravar os Fake Numbers e entender por que nos enganamos tanto.

Uma breve história das Fake News

“O Homo sapiens conquistou esse planeta graças, acima de tudo, à sua capacidade exclusiva de criar e disseminar ficções.”

Yuval Noah Harari

A frase acima é sentida como um soco no estômago para muitos de nós. Atribuir nosso êxito evolutivo à habilidade de inventar ficções, foge do romantismo que costumamos associar à nossa história.

No livro 21 Lições para o Século 21, Harari aborda as Fake News de uma maneira um tanto polêmica. Segundo o argumento do historiador, não adianta culparmos o Facebook, a direita, a esquerda, a publicidade ou os jornais por introduzirem a nova e assustadora era da pós-verdade:

“Lembre-se de que séculos atrás milhões de cristãos se fecharam dentro de uma bolha mitológica que se autorreforçava, nunca ousando questionar a veracidade factual da Bíblia, enquanto milhões de muçulmanos depositaram sua fé inquestionável no Corão.”

Em tempos mais recentes, ainda segundo Harari, cada nação criou sua própria mitologia nacional, movimentos como o comunismo, o fascismo e o liberalismo modelaram elaborados credos que se autorreforçavam.

Diz-se que Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazista, explicou seu método sucintamente, declarando que “uma mentira dita uma vez continua uma mentira, mas uma mentira dita mil vezes torna-se uma verdade“.

A máquina de propaganda soviética foi igualmente ágil com a verdade, reescrevendo a história de tudo, desde guerras inteiras até fotografias individuais.

Empresas comerciais também se apoiam em ficção. Divulgar uma marca envolve recontar a mesma narrativa ficcional várias vezes, até as pessoas ficarem convencidas de sua veracidade.

No final das contas, a criação de ficções pode ter uma origem benevolente, como no caso de algumas religiões, ou cruel, como no exemplo de ditadores.

Porém, não deveríamos relativizar a mentira. A verdade deveria estar acima de qualquer intenção ou crença, certo? Segundo Harari, não:

“Como espécie, os humanos preferem o poder à verdade. Dedicamos muito mais tempo e esforço tentando controlar o mundo do que tentando compreendê-lo. Por isso, se você sonha com uma sociedade na qual a verdade reina suprema e os mitos são ignorados, não pode esperar muito do Homo sapiens.”

Enganados

As ficções criadas ao longo de nossa história, portanto, serviram aos mais variados propósitos – para vender um produto, atrair fiéis, conquistar apoio político ou, simplesmente, para validar uma opinião.

As Fake News são um produto da nossa tendência de criar narrativas associada à intenção de convencer os outros. E, hoje em dia, nada melhor do que apelar aos números para dar vida à uma ficção.

Existem dois tipos de pessoas que fazem uso dos Fake Numbers: os enganados, aqueles que realmente acreditam nos números que estão trazendo, e os mentirosos, aqueles que sabem que estão utilizando dados infundados.

Na minha opinião, a maioria são os enganados.

O que, dependendo do ponto de vista, poderia ser uma boa notícia, mas, quando pensamos um pouco mais, concluímos que o efeito é o mesmo – ou seja, tanto os mentirosos quanto os enganados distorcem a verdade.

Assim, fica claro que precisamos entender como os Fake Numbers podem nos enganar.

Felizmente, temos uma ótima referência para isso. Daniel Kahneman, no livro Rápido e Devagar, apresenta um capítulo inteiro sobre heurísticas e vieses que nos induzem ao erro:

Heurísticas

Heurísticas são atalhos mentais inconscientes que o nosso cérebro utiliza para ganhar eficiência. Dessa forma, decisões acabam sendo tomadas de maneira automatizada, sem uma análise consciente e mais detalhada.

Se por um lado ganhamos agilidade e economizamos energia ao fazer isso em situações corriqueiras, do outro, acabamos nos expondo a um grande risco de erro de interpretação, ao fazê-lo em situações mais complexas.

Kahneman cita três heurísticas principais: Ancoragem, Disponibilidade e Representatividade:

Ancoragem

O efeito de ancoragem acontece quando as pessoas estimam um valor para uma quantidade desconhecida, baseando-se em outra variável.

“O que ocorre é um dos resultados mais confiáveis e robustos da psicologia experimental: a estimativa fica perto do número que as pessoas consideram – por isso a imagem de uma âncora.”

Ou seja, as pessoas “ancoram” sua opinião na referência mais próxima, buscam correlações para facilitar sua análise. Existem muitos exemplos para ilustrar esse fenômeno, o mais fácil de entender é a precificação.

Em um experimento citado por Kahneman, corretores imobiliários tiveram a oportunidade de sugerir o valor de mercado ideal para uma casa.

Metade dos corretores recebeu um panfleto com o preço atual consideravelmente mais alto do que o valor real da casa. A outra metade recebeu um preço substancialmente mais baixo.

Depois de conhecerem a casa e fazerem todos os questionamentos que julgaram pertinentes, os corretores utilizaram sua vasta experiência e deram seu palpite sobre um valor de mercado razoável.

O efeito de ancoragem foi relevante. Aqueles que foram expostos a um preço mais alto, sugeriram novos valores consideravelmente maiores. Exatamente o contrário de quem foi exposto a preços mais baixos no início.

Os corretores tinham convicção de que suas estimativas foram baseadas apenas em sua análise empírica e nas observações que fizeram na casa e na vizinhança. Eles insistiam que o preço inicial não teve efeito algum em suas respostas.

Os pesquisadores fizeram a mesma pesquisa com um grupo de estudantes sem qualquer experiência no mercado imobiliário e o efeito de ancoragem foi muito parecido. A única diferença foi que o segundo grupo admitiu ter sido influenciado pelas âncoras.

A consequência é a tendência de acreditarmos, sem fazer maiores questionamentos e sequer perceber a ancoragem, que um restaurante mais caro tem mais qualidade, um político líder nas pesquisas de intenção de voto é mais competente, um produto utilizado por uma celebridade é melhor, o investimento da moda é a opção mais rentável, e muitos outros exemplos.

Disponibilidade

Kahneman define a heurística de disponibilidade como o processo de julgamento segundo a “facilidade com que as ocorrências vêm à mente.”

Ou seja, a velocidade na qual você recorda de algo associado àquilo que está observando influencia sua opinião.

As consequências dessa heurística vão deixar tudo mais claro:

  • Um evento proeminente que chama sua atenção será facilmente recuperado na memória. Escândalos sexuais entre celebridades atraem muita atenção, e os exemplos virão facilmente à sua mente. Você é, desse modo, propenso a exagerar a frequência desses escândalos.
  • Um evento dramático aumenta temporariamente a disponibilidade de sua categoria. Um acidente de avião que atrai cobertura da mídia vai alterar temporariamente seus sentimentos sobre a segurança de voar.
  • Experiências pessoais, fotos e exemplos vívidos são mais disponíveis do que incidentes que aconteceram com outros, ou meras palavras e estatísticas. Um erro judicial que o afete vai minar sua fé no sistema de justiça mais do que um incidente similar sobre o qual você tenha lido em um jornal.

Lembre-se de quando comprou ou cogitou comprar um carro, por exemplo, não pareceu que esse mesmo modelo começou a aparecer na rua com muito mais frequência?

Dois fenômenos atuais fazem com que as interpretações baseadas na disponibilidade ganhem ainda mais notoriedade:

  • As redes sociais e seus algoritmos potencializam essa heurística ao lhe bombardear com conteúdos semelhantes àqueles que você já consumiu. Aumentando, assim, a disponibilidade em sua mente e influenciando seu julgamento (sem você perceber).
  • A dominância das conclusões precipitadas sobre os argumentos é ainda mais pronunciada quando há emoções envolvidas. A heurística do afeto faz com que as pessoas deixem que suas simpatias e antipatias determinem suas crenças acerca do mundo.

Assim, você acaba, por exemplo, “enxergando” apenas as boas notícias de seu político favorito.

Representatividade

Tentar estimar a probabilidade de algo não é tarefa fácil. Matemáticos e estatísticos desenvolveram alternativas para isso, porém, para o leigo, a probabilidade é uma noção vaga, relacionada à incerteza, propensão e surpresa.

Por isso, nosso cérebro tem um atalho mental, a avaliação automática da representatividade.

Um ótimo exemplo é o tema central do livro de Michael Lewis que virou filme estrelado por Brad Pitt, Moneyball.

Lewis conta a história de Billy Beane, gerente de um time de Beisebol nos EUA, que tomou a impopular decisão de selecionar seus jogadores segundo estatísticas de desempenho.

Bem diferente de muitos dos olheiros mais tradicionais, que previam o sucesso de possíveis jogadores apenas por sua constituição física e aparência.

(Se você é alto, certamente já lhe disseram que daria um bom jogador de vôlei ou basquete, mesmo sem fazer qualquer avaliação das suas habilidades).

O resultado foi que, ao quebrar esse paradigma, Beane contratou jogadores mais baratos – pois as outras equipes os haviam rejeitado por não terem o perfil – e seu time em pouco tempo conquistou títulos e alcançou a alta performance.

A heurística da representatividade pode nos fazer enxergar padrões que não existem. Ao buscar atalhos, nossa mente nos induz a fazer generalizações e julgar segundo estereótipos.

Apesar de nos ajudar em alguns casos, esses vieses inconscientes, normalmente, nos induzirão ao preconceito e ao erro, sobretudo se levar as pessoas a negligenciar informações que apontem em outra direção.

“Mesmo quando a heurística tem alguma validade, a confiança exclusiva nela está associada a graves pecados contra a lógica estatística.”

Vieses

Vieses são tendências inconscientes de distorcer uma análise. Eles podem ser motivados por heurísticas, outros hábitos mentais ou até mesmo influências externas.

No post Execução na Era Pós Digital: Cultura e Tecnologia, citamos alguns exemplos:

  • Viés da confirmação: a tendência a procurar, interpretar, focar e lembrar-se de informações de tal forma que confirmem suas próprias ideias preconcebidas;
  • Viés da apresentação: tirar conclusões diferentes a partir da mesma informação, dependendo de como e por quem a informação é apresentada.
  • Viés de otimismo: a tendência a ser demasiado otimista, superestimando os resultados favoráveis e agradáveis.
  • Viés da falácia do planejamento: a tendência a superestimar os benefícios e a subestimar os custos e tempo de conclusão de tarefas;
  • Viés de custos irrecuperáveis ou aversão a perda: a inutilidade de desistir de um objeto é maior do que a utilidade associada ao adquiri-lo.

Para complementar o entendimento, vamos apresentar mais detalhadamente outros dois vieses que, na minha opinião, estão cada vez mais presentes, ainda que despercebidos:

Viés da Confiança

O viés da confiança é um hábito mental que favorece a certeza sobre a dúvida:

“Tendemos a exagerar a consistência e a coerência do que vemos.”

O exemplo mais claro desse viés é o fato das pessoas não serem adequadamente sensíveis ao tamanho da amostra.Temos uma forte tendência de acreditar que amostras pequenas se parecem muito com a população da qual são extraídas.”

Pense no exemplo apresentado na introdução desse post. Em nenhum momento o tamanho da amostra foi citado. Talvez tenham avaliado apenas 10 ou mesmo mil alunos. Qual seria a relevância dessa pesquisa para entendermos o destino profissional de bilhões de pessoas?

O problema é que amostras pequenas fornecem resultados extremos com mais frequência.

Por isso são mais impactantes, mais atraentes. Seja para quem está querendo provar um ponto ou para alguém que esteja tentando compreendê-lo.

“Sustentar uma dúvida é um trabalho mais árduo para o cérebro do que aceitar suavemente uma certeza”. Assim, nos satisfazemos com falsas explicações, padrões e causas até nos eventos mais isolados e aleatórios.

Regressão à média

A regressão à média não é um viés propriamente dito. Trata-se de um fenômeno estatístico que alimenta a nossa tendência de criar ficções para tentar explicar a causa de tudo.

Estatisticamente, toda variável tende a voltar à média. Um desempenho superior tende a cair e um desempenho ruim tende a subir. Apenas resultados medíocres tendem a se manter estáveis (melancólico, porém, fato).

Kahneman ilustra esse viés com uma história pessoal:

“Por acaso assisti ao evento de salto com esquis masculino nas Olimpíadas de Inverno. Cada atleta tem dois saltos no evento, e os resultados são combinados para a pontuação final.

Fiquei chocado de ouvir os comentários do locutor quando os atletas se preparavam para seu segundo salto:

‘O atleta da Noruega deu um ótimo primeiro salto; ele vai ficar tenso, esperando proteger sua vantagem, e provavelmente vai se sair pior‘ ou ‘O sueco teve um primeiro salto ruim e agora ele sabe que não tem nada a perder e ficará relaxado, o que deve ajudá-lo a se sair melhor‘.

O comentarista obviamente detectara a regressão à média e inventara uma história causal para qual não havia evidência alguma.

O ponto a lembrar é que a mudança do primeiro para o segundo salto não necessita de uma explicação causal. É uma consequência matemática inevitável para o fato de que a sorte desempenhou um papel no resultado do primeiro salto.

Uma história não muito satisfatória – todos preferiríamos um relato causal -, mas isso é tudo que há.

Explicações causais serão evocadas quando a regressão é detectada, mas estarão erradas, pois a verdade é que a regressão à média possui uma explicação, mas não possui uma causa.

Efeitos de regressão são uma fonte comum de dificuldade até para cientistas mais experientes, que desenvolvem um medo saudável da armadilha da “inferência causal injustificada“.

“De fato, pagamos muito bem a algumas pessoas para fornecer explicações interessantes aos efeitos de regressão. Um consultor empresarial que anuncia corretamente que os negócios foram melhores este ano porque foram mal no ano passado muito provavelmente está com os dias contados.”

Para finalizar

Compreender toda essa dinâmica e ter consciência desses atalhos são os primeiros passos para conseguirmos olhar para os dados de maneira mais crítica.

Mas lembre-se que não é só você que tem atalhos mentais distorcendo a verdade. Praticamente toda informação é carregada de viés humano (ou de Lógica Simbólica, conceito que o leitor mais antigo desse blog conhece bem).

As heurísticas e vieses dependem de experiências e perspectivas individuais, ou seja, “a verdade” é diferente para cada pessoa. É exatamente por isso que não deveríamos tomar decisões importantes ou fazer julgamentos baseados, exclusivamente, em nosso “feeling“.

Os dados são a melhor forma de combater as perigosas Fake News e diminuir a incerteza.

Por isso, no próximos post, vamos partir para uma abordagem mais prática e tentar entender como evitar o engano, interpretando esses dados corretamente e superando os Fake Numbers.

Referências: Rápido e Devagar, Daniel Kahneman, 2011. 21 Lições pra o Século 21, Yuval Noah Harari, 2018.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *